Na alta idade média a grande
autoridade passa a ser o compilador Juliano Solino. Não se observa, não se
concretiza. Não se descreve a realidade envolvente que se não percepciona. No
mundo dos homens, produto da vontade do criador, vive-se sem se procurar
explicações para fenómenos que são apenas considerados dados de facto. Natureza
e homem foram criados, verdade que não se investiga, e articulam-se em regras
imutáveis. O que se sabia do Mundo grande e elementar, vinha compendiado em
Osório e Isidoro. O homem e o que o rodeia são percepcionados em bloco no mesmo
quadro. O homem corporal é o microcosmos, feito pelos mesmos quatro
elementos que o mundo físico. Composto
por: terra a carne, de água o sangue, de ar a respiração, de fogo o calor. Não
há distanciação que permita observar e descrever e muito menos alcançar a
compreensão e explicação da natureza.
Contudo, a Sul da península,
no séc. X vamos encontrar viva a atitude helenística de observação da terra e do
meio natural.
Na área cultural islâmica
nasce e desenvolve-se a geografia descritiva globalizante que não é
propriamente tributaria de nenhuma disciplina especializada, sendo portanto de
todas. A geografia descritiva totalizante é em simultâneo geografia: política,
administrativa, social, etnográfica, linguística, religiosa, agrícola,
industrial e comercial. Instrumento atuante na cultura, na administração e na
política, que não apenas género literário ou disciplina intelectual.
No séc. XII com El Idrisi
conjugam-se a cartografia e a descrição geográfica. Encarregado de elaborar um
mapa-mundi, informa-se e procurar situar as terras e os mares. Como o seu
trabalho se destinava à construção de um mapa já não se encontrava integrado na
concepção da cultura Islâmica com a mesma frescura.
Mas se a narração do exótico
se vai desenvolver a partir do séc. XII, lentamente, embora, nos séculos
seguintes outros tipos de registos se vão apurar: os roteiros marítimos
descrevendo as costas e os portos, as cartas de marear, que são complementares
e os registos de mercadores, que precisam de saber as particularidades das
praças comerciais.
Apesar e por causa da
profunda crise estrutural no séc. XIV
nas economias europeias, novas saídas
comerciais se procuram, pelos mares. Resultado da intensificação da navegação
comercial, as cartas de marear começam a aperfeiçoar-se e o traçado das costas
já não é mítico mas fruto de observação. Novos instrumentos permitem igualmente
a melhoria da representação gráfica: a utilização da bússola, o regimento das
horas da noite, o uso de relógios de areia.Tudo se vai registando na
cartografia que acompanhou os progressos dos conhecimentos geográficos que as
relações religiosas, a diplomática e o comércio proporcionavam desde começos do
séc. XIV. Uma nova literatura mistura o real e o imaginário, o observado e as
borras de uma cultura velha de séculos, sem critério de destrinça entre
verosímil e inverosímil.
De algum modo ligado à mesma
ansia de conhecer o mundo que suscita a literatura de viagens surgirá, no séc.
XV, um género ainda mal estudado: os livros de arautos, dos quais constam
descrições de terras, informações heráldicas, nada de invenção. O maravilhoso
desaparece desta literatura que parece ser a primeira manifestação de aquilatar
da qualidade dos senhores pela prosperidade dos domínios respetivos. No caso do
anónimo português a sua atenção centra-se
nas riquezas naturais e nos rendimentos eclesiásticos, a que não se deve
estranhar dadas as funções do arautos: conhecer, reconhecer e honrar os
senhores. Não se avança além da simples enumeração.
Na literatura portuguesa de
viagens ultramarinas a descrição surge, mas mesmo assim está averiguado que se trata antes de
mais de uma necessidade de reconhecimento dos locais. A natureza quando se
manifesta na literatura vai ainda trazer a marca dos livros e isso bem entrado
no renascimento.
A literatura medieval mesmo quando os homens do mar já conheciam
bem as costas não reflete ainda a nova realidade. Mesmo a cultura profana está
dominada pelo enquadramento final da escolástica decadente. Da literatura
medieval ficará a semente da descrição no louvor das crónicas gerais.
Manifestação da presença do meio natural para explicar pelas riquezas
obtidas ou não os feitos militares.
Contributo do Humanismo
Para os meios mercantis em recuperação e forte crescimento em meados do séc. XV o confinamento
eclesiástico da sabedoria, tudo subordinado ao conhecimento teológico, não
corresponde mais a um mundo em mudança. A busca de padrões de cultura diferente vai levar à viagem decisiva para a antiguidade como modelo. Em
movimento sinuoso, contraditório, a recuperação dos escritos clássicos leva a
descobrir a natureza, uma atitude de imitação dos antigos, que tinham observado
e descrito. Para os humanistas que vão laicizando a cultura, as contradições
raramente se resolvem, e enfiam-se em becos sem saída. Acontece que os
humanistas, que promovem uma abertura
cultural fervilhante de novidade, se enredam e bloqueiam no respeito
pelos clássicos. E acabam por servir os meios culturais que abalaram e não a
sociedade mercantil em que se inserem e de que são produto.
Os humanistas inicialmente
italianos ou de formação italiana estão apegados aos autores da antiguidade, um
deles será Lúcio Marineo, de formação romana que instalado professor em
Salamanca, e depois capelão régio, que introduzirá a geografia descritiva na península. Lúcio
Marineo quer descrever não só o que a
natureza produz, as ações memoráveis dos reis, os varões ilustres, santos e
mártires, como as cidades e fortalezas, tudo o que deve ser lembrado das coisas
de Hispânia. Não é assim idêntico ao velho louvor na medida em que agora há concretização e exemplificação com
algum pormenor ainda que não faltem os disparates dos humanistas.
Homem de negócios, Damião de
Góis, recusa o ingrediente comum das autoridades clássicas, porque os antigos
observaram o que se passava na antiguidade e nós temos de observar o que se passa no nosso
tempo. Góis permanece sempre o português ligado aos meios mercantis da expansão. Damião de Góis
ignora tudo do aspecto da terra, forma e situação, está preocupado com o vulto que a península ganha pelos seus feitos atuais, pelos grandes
tratos internacionais, principalmente asiáticos, em cujo centro se situa. Visão
moderna aberta à novidade dos impérios atlânticos e às imensidades da longínqua
Ásia é a que expressa Damião de Góis, cosmopolita imperfeitamente colado ao
humanismo europeu corrente.
Para a esfomeada curiosidade
renascentista era necessário saber-se tudo, quer Marineo, quer Góis quer Nânio
se preocupam com a riqueza de fidalgos e bispos, coma vida dos barões contemporâneos. Marineo
viu-se censurado, Góis temeu-se de dizer a riqueza dos fidalgos e remeteu para
o anterior já Nânio refere a necessidade
desse conhecimento.
Esta preocupação com a riqueza e poderio dos nobres, a necessidade
de se saber quais as força para a guerra ou para a paz, não estão apenas na
cabeça, por vezes desarrumada, dos
humanistas. É um fenómeno do período de construção dos Estados nacionais
e da supremacia do Soberano.
A geografia de uma terra em
alargamento no espaço, com novas de
terras até então ignoradas, choca com os quadros mentais de uma sociedade em
conflito cultural, em que o legado da Idade Média está a ser posto em causa
pela redescoberta da Antiguidade. E nesse conflito e consomem os humanistas,
quantas vezes preterindo o novo, ou redescoberto, em favor de uma filológica
interpretação do Antigo. Acresce ainda a premência dos conflitos religioso, que
o renascimento acelera, e compreende-se a pouca atenção que merecerão, até
muito tarde, o Novo Mundo e a África.
Os humanistas preferem muitas
vezes as antigualhas que desenterram à observação direta. A própria
imprensa que seria muito legitimo
pensar-se daria noticia dos achamentos e descobertas vai sobretudo editar os
clássicos gregos e latinos. Assiste-se à contraditória situação de um
instrumento de progresso funcionar como poderoso freio.
A atitude dos humanistas
também se sente na península mas aqui a vivência das descobertas teria de
modificar a mentalidade colectiva, não que se ignorem os clássicos ou se
menospreze o saber transmitido pelos medievais, mas um novo elemento, o
conhecimento direto da terra em
alargamento em novas terras, o saber de nautas e mercadores opõe-se em
simultâneo à tradição medieval e ao restauro dos antigos. Estas três atitudes
não parecem compatibilizar-se e a explicação deve residir na separação que se
faz entre geografia/cosmografia e geografia corografia. Esta separação tem
raízes teóricas numa das obras fundamentais da antiguidade, largamente
difundida pela imprensa. Na obra de Ptolomeu apresenta-se logo a abrir a diferença entre geografia e
Corografia.
A Geografia descritiva fica
assim, por obra de matemáticos e cosmógrafos, para o papel de pintura e de
pormenores sem as honras da matemática. Os campos extremam-se. A Corografia vai
assim surgir pela mão de funcionários para precisar elementos administrativos e
junto da história para explicar as ambições e de riqueza dos heróis.
O contributo dos humanistas
para o aparecimento de uma geografia descritiva
parece à primeira vista não ter sido grande. Não o foi pela certa,
intencionalmente, por não se enquadrar nas suas preocupações. Na realidade foi
decisivo. Com os humanistas inicia-se a observação do concreto, a preocupação
em distinguir as regiões da península, o registo das riquezas e dos seus
possuidores. Com eles também a geografia descritiva será relegada para o campo
literário e empurrada para junto da crónica, frustrando-se a ligação com a
cosmografia.
As necessidades do Estado e dos grupos dominantes
Mostrar, elogiar e enaltecer
e enaltecer as pátrias são sempre os propósitos declarados por quantos registam
as maravilhas e curiosidades de suas terras, na linha das intenções entrevista
nos livros de arautos.
A primeira obra deste género
que se conhece data de 1512 do Mestre António “tratado sobre a província
d’Amtre Douro e Minho e suas avondanças”. Este mestre António mal sonhava a
divulgação que as suas informações iriam ter.
A mesma preocupação de
enaltecimento da sua pátria leva João de Barros a compor a “Geographia d’antre Douro e Minho e Trás os
Montes” em 1548, despejando catadupas de erudição enumera cuidadosamente
igrejas, mosteiros, terras e terrinhas, produções, pontes, curiosidades e
anomalias insistindo no ponto, porque viu.
A enumeração de riquezas,
fertilidade, produções de uma região ou terra não deve ser tomada como simples
encómio. A preocupação pelo numero, que vai levar séculos a atingir as
adequadas técnicas de tratamento, já está bem evidente.
Mistura de informações
topográficas, elogio e enaltecimento do comércio português, surge em 1554 a “Urbis Olisiponis Descriptio” de Damião
de Góis. Ao contrário da Hispania, em
que recusara a erudição, a Lisboa de
Góis aparece escorada pelos antigos. Sendo sua intenção, descrever a situação e estado atual da cidade de
Lisboa, lança-se em longos excursos por
romanos e mouros. Mas o mais lhe toca: conquista e, principalmente, feitos de expansão ultramarina. Ao gosto dos
humanistas estriba-se nos antigos para obter passaporte para a europa culta.
Preocupado coma credibilidade do que relata se apresenta o
agostinho frei João de S.José, a sua Corografia
do Reino do Algarve dividida em quatro livros, datada de 1577 é seguramente o melhor exemplo do género
histórico-corográfico renascentista em Portugal. Escritor escorreito e com
algum mérito, frei João de S. José, o
que sabe pelos livros não abafa o que observa, se não dispõe de muitos informes
numéricos sabe ver e relacionar com perspicácia, dando-nos a chave para o entendimento do Algarve quinhentista. Erudito
não aceita sem crítica o que dizem os antigos. Com frei João de S. José o
género corográfico atinge o seu ponto culminante. O estilo pretensioso de uma
literatura tida como menor, a necessidade aristocrática de mostrar antepassados
gloriosos afectando também cidades e vilas, a tacanha religiosidade, concorrem
para que as corografias se cristalizem, desapareça a originalidade e o sangue
novo das observações diretas.
O que era inevitável, pois as
corografias deixam de ser literárias
para entrarem no campo da administração pública.
O Estado no seu esforço
centralizador tem de ter conhecimento do espaço nacional e regional, saber o
que se passa e onde. Se já dispõe de alguns meios de ação, nomeadamente
judicial e militar, não dispõe de
informação eficaz. Sabendo-se pode-se tributar melhor e tudo passa a girar à
volta das crescentes necessidades do fisco.
A punção tributária, indispensável para garantir à coroa os réditos de
que precisa para manter os seus domínios em guerra ou em paz, impõe o
aperfeiçoamento da máquina estatal. O que não pode fazer-se sem um conhecimento
pormenorizado do espaço nacional e do que nele se contém. É imprescindível
conhecer o reino e o que nele há.
Neste contexto político as
descrições apresentam três níveis de significação:
1 – conhecimento
pormenorizado do próprio território que define o Estado
2 – conhecimento das terras
com que de imediato a política estatal se relaciona, nomeadamente as colónias
3 – conhecimento de
caracteres, riquezas e forças dos Estados com os quais se relaciona
A primeira será aquela à qual
nos vamos dedicar alguma atenção. Desta nova realidade, conexão da política com
as descrições, tinham já tido os humanistas consciência. A preocupação militar
irá sempre em crescendo e a necessidade de informação acompanhá-la-á.
Necessidade do Estado de conhecer o território, obra as mais das vezes de
funcionários e não de escritores, a tarefa de pintura que à corografia estava
reservada pela definição ptolomaica raras vezes acontece.
A frustração: A Geografia de João de Barros
Está-se na viragem de meados
do séc. XVI, viragem que é estrutural. O império português enfrenta
dificuldades que não são meramente conjunturais. A crise financeira impele
Portugal para a órbita da prata castelhana. A burguesia inicia o seu caminho
para a aristocracia. Culturalmente o breve fogacho de europeização que o
Colégio das Artes representará vai desaparecer com a perseguição inquisitorial.
Em 1555 a Companhia de Jesus substitui os pestíferos críticos da escolástica. O
seu método todavia vai ser o dos humanistas. E aos Jesuítas se deve a fixação
do humanismo nos estudos. Porém esse
humanismo perde a sua exuberância cristalizando-se. Na altura representa um
progresso que ao enquistar-se, conjugado com o formalismo católico de uma
contra-reforma que em Portugal não teve expressão original e superior ao nível
da espiritualidade, arreda o que é novo. Mas isso será obra do séc. XVII.
Na segunda metade do séc. XVI
estão vivas e fervilhantes as novidades das descobertas de além-mar. A
literatura portuguesa está a gerar os seus expoentes. Sabe-se que João de
Barros programou uma ambiciosa obra, uma geografia, que seria em simultâneo uma
cosmografia e corografia. Evidentemente que tem raízes na constatação dos
navegadores da insuficiência das obras antigas. Não é aos meios aristocráticos
ou ao clero que tal obra pode interessar mas sim aos meios mercantis e em
especial ao rei, que é o maior dos mercadores do reino. João de Barros vai
coligindo informações, na qual se integra a obra de Gaspar Barreiros um outro
João de Barros, o Doutor, na Geografia
d’antre Douro e Minho e Trás os Montes regista as coisas que considera
memoráveis nessa região do reino para que “se pudesse ajuntar a mais
cosmografia quando fosse o caso que alguém mais particularmente quisesse
investigar”. Que a ideia andava no ar, andava. Tinha mesmo tido rudimentar
concretização, a nível geral da europa, sem minudências corográficas na Geografia
que Munster apensara à sua tradução de Ptolomeu. Geografia, como escreve, em
sentido comum, para distinguir da cosmografia. Descrição de terras, mares,
montanhas, rios com as suas histórias e coisas memoráveis. Procura definições,
como ilha, golfo, península, porto, istmo, lago, cidade, fortaleza,
promontório.
A obra de Munster marca um
ponto extremamente importante na literatura geográfica, rompendo parcialmente
com os esquemas humanísticos. Em 1541 Ocampo publica a obra Crónica Geral de
Afonso X. Com obra de Ocampo a ruptura
com os humanistas parece estar a consumar-se, o autor aproxima-se dos práticos
da navegação. Isto por uma altura em que os humanistas também se dedicam à
geografia descritiva, não como disciplina autónoma, mas como ancilar ao comentário
de textos clássicos. O que revela tratar-se apenas de resolver problemas de
método e não necessidades de
interpretação do mundo. Em 1560 temos também ligado ao Estado e meios
mercantis uma novidade, publica-se em Veneza a carta corográfica de Portugal da
autoria de Fernando Álvares Seco. Trata-se de um trabalho muitíssimo avançado
para a época, podendo afirmar-se que é o primeiro deste tipo que se conhece.
Neste mapa destaca-se já a linha de costa e a rede hidrográfica, na qual se
marcam pontes, itinerários e pensando
nestes temos as questões militares. O mapa de Fernando Álvares seco teve um enorme êxito, sobretudo
por passar a vir em todas as coleções de mapas.
A geografia de João de Barros
coroaria o processo de criação da
disciplina geográfica dando-lhe o remate monumental e científico que marcaria
em Portugal, a substituição dos medievais e dos humanistas. A sociedade
burguesa e mercantil nela teria a sua
expressão mas João de Barros morre em 1570 deixando o borrão da obra.
As descrições e a identidade
nacional
Uma das vias que se abrem à
geografia é a da marcação da identidade
nacional. Os portugueses já tinham da sua terra uma imagem global: o mapa de
Álvaro Seco no entanto faltava a correspondente descrição literária, a qual
surge junto de uma crónica a intragável primeira parte da Monarquia Lusitana, como tentativa de apresentação autonomizada da
Hispânia, da geografia da moderna Lusitânia. Será paradoxalmente a Geografia antiga da Lusitânia, saída em
Alcobaça em 1597, que revela um frei Bernardo de Brito. Lá vêm os autores
antigos e junto com essa ornamentação a
descrição dos montes dos rios das gentes. As informações que dá são preciosas.
A frei Bernardo de Brito cabe assim o lugar de estreante nas descrições
portuguesas. Pela primeira vez se esboça o todo nacional numa visão
simultaneamente erudita e decorrente da observação direta. A pretensão
autonomista apresentada sem finura na Monarquia
Lusitana espelha-se igualmente nesta
geografia a Lusitânia. A demarcação
da Lusitânia do todo hispânico será doravante um dado adquirido. Não mais as
visões conjuntas de fundo humanístico, ou mesmo medieval, perturbara a presença
desta unidade portuguesa que a cartografia aliás precedera pelos menos 40 anos.
Portugal dispunha desde 1560
de uma imagem da sua forma: o mapa de Álvaro Seco que as grandes compilações de
Ortelius, Gerard de Jode, e o Atlas Mercator difundiam através das suas
inúmeras edições, contudo, não dispunha da correspondente identificação
nacional geográfica de expressão literária, que a autonomiza-se no espaço
hispânico. Vai consegui-lo com pleno êxito o autor de uma Origem da Língua Portuguesa e de uma Crónica dos reis de Portugal. Espaço, história, língua. Os três
elementos fundamentais dessa busca de
imagem coletiva de Portugal. Precisamente no período filipino. O que Duarte
Nunes do Leão fez, e bem, foi assinalar indelevelmente Portugal como Portugal.
Muito especialmente na Descripção
pois recolhendo os contributos preexistentes
soube apresentar a imagem possível
no séc. XVI que terminava. Muito menos devota, mas não acrescentando
novidades a Duarte Nunes do Leão surge a descrição geral a incluída no Epitome de Manoel de faria e Sousa, ainda que não acrescentando
nada de novo apresenta um Portugal verosímil.
Esta “tonteria” patrioteira em que
o elogio geográfico é assinalável fecha
o caminho iniciado por frei Bernardo de Brito.
Uma geografia para a sociedade do barroco
Depois de Descripção do Reino de Portugal entra em
declínio a descrição regional. Parecia
que a imagem parcelar deixara de ter o mesmo interesse. Humanistas ou
escritores já do barroco com formação erudita, funcionários encarregados do
levantamento do que interessa a quem tem de receber rendas, vão-se aproximando
no tipo de escrita. Da seca enumeração
de um João Brandão aos cuidados com os autores antigos com frei Nicolau de
Oliveira os caminhos convergem. À medida que se avança na sensibilidade barroca
a erudição não diminui, mantendo-se a informação. Sinal dos tempos. Extensão da
cultura humanista a todo o ensino como resultado do estabelecimento dos
jesuítas poe todo o Portugal e adoção generalizada do seu modelo escolar,
conjugada com as crescente necessidades da administração pública. As
preocupações governamentais com a defesa
nesta primeira metade do séc. XVII, vão intensificar-se. E as descrições,
instrumentos da administração e quadro de referencia, são indispensáveis.
Impõe-se a medição há que procurar o rigor. Tão importante como os dados
apresentados é o facto de se reproduzirem com preocupação da exata medida, as
plantas das fortalezas. População, riqueza, rendas, gente de guerra, comandos e
efetivos militares, armas, munições e fortalezas nas suas precisas dimensões.
Medir, Contar. Está-se perante o programa do estado renascentista já
cristalizado.
Começando por uma viragem dos
humanistas para a natureza envolvente do homem, homem que se destaca do meio –
inicialmente com atitude literária – as descrições assumem no Estado barroco
que do renascimento resultará, o significado de instrumento de governo. A
burocratização do Estado pressupunha saber o onde dos acontecimentos. As
descrições permitem situar. Pode até ser
que uma descrição sirva a um representante régio para ter um conhecimento
prévio da terra que vai governar.
Conclusão
A trajetória iniciada nas crónicas
e relatos medievais, acrescidas das descrições de viagens propulsionadas pela
“fome” de conhecer outros espaços vem a traduzir-se num fracasso.
Portugal não terá a sua
descrição por incapacidade de construção do real. Carência das formas de
sensibilidade que se ficam por uma
percepção rudimentar. Não se cria a distanciação entre o humano e o natural.
Tímidos esboços, mornas imprecisões de
homens ainda insuficientemente separados do meio, que o não interpretam nem interrogam como
objeto do conhecimento.
A conjugação do humanismo,
das viagens além-mar – alargamento no
tempo e nos espaço – e a necessidade da medida e da quantificação
permitem caminhar no sentido de um
apuramento da percepção num diferente
universo espacial. A descrição não foi tão longe em Portugal porque não existiu capacidade de rompimento com o
universo mítico e maravilhoso da mentalidade dominante. Em Portugal ficou-se
pela descrição possível, já fora do tempo: a de Duarte Nuno do Leão. A pressão
cultural da igreja triunfante (inquisição) e a cristalização social do barroco
bloqueiam o caminho já aberto.